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Sagrado e Profano – sobre cantatas de Bach e árias de Händel

Atualizado: há 2 dias


Montagem com retratos dos compositores Bach, Scarlatti e Händel

Se as árias das Cantatas de Bach são verdadeiras meditações integradas a uma narrativa litúrgica, as de Handel são teatrais, servindo muito bem aos dramas que representavam.



O jornalista cultural Milton Ribeiro comenta com leveza e erudição o repertório do nosso concerto do dia 7 de julho, em Porto Alegre, que apresenta a música vocal de Bach – através de uma cantata e excerto de missa – e as árias de ópera de Handel.


CONCERTO: Ouça este repertório ao vivo no dia 8 de julho de 2025, em Porto Alegre. Informações e ingressos aqui.


A Sinfonia barroca 

A primeira peça do Concerto é a Sinfonia da Cantata BWV 156 de Bach. Talvez devamos explicar que o termo Sinfonia, na época, era uma peça instrumental breve que introduzia principalmente óperas, oratórios e cantatas. Esta Sinfonia é um dos casos mais interessantes de reutilização musical por Bach. Ela aparece um pouco alterada no Concerto para Cravo BWV 1056 — provavelmente composto antes da cantata. Bach frequentemente reaproveitava temas seus em novos contextos. Era um costume da época.


Concerto em salão durante o período barroco, onde sinfonias introduziam cantatas e oratórios. c. 1730, França ou Alemanha, pintura de salão de música.
Concerto em salão durante o período barroco, onde sinfonias introduziam cantatas e oratórios. c. 1730, França ou Alemanha, pintura de salão de música.

O sublime Christe eleison

O Christe eleison da Missa em Si menor BWV 232, de Bach, é um dos momentos mais sublimes e intricados da obra. Ele é o segundo movimento na Missa após o Kyrie eleison I e antes do Kyrie eleison II. É um dueto para soprano e alto, com acompanhamento de violino solo e baixo contínuo. A Missa é uma das obras mais importantes de Bach.

Gravura da c. 1720–1740 mostrando a fachada e a praça em frente à Thomaskirche em Leipzig,
Gravura da c. 1720–1740 mostrando a fachada e a praça em frente à Thomaskirche em Leipzig, provável palco simbólico da estreia completa da Missa em Si Menor—apesar de ter sido executada apenas em 1859, também em Leipzig, pelo Riedel‑Verein na St. Thomas Church.

A Cantata BWV 82: manual de como morrer

Podemos dizer que Bach conviveu muito com a morte. Ela foi sua companheira constante. Seus pais faleceram quando ele era menino. Sua primeira esposa morreu jovem. Ele sofreu a morte de seis de seus 20 filhos, incluindo a de um filho de seis meses antes de escrever a Cantata BVW 82.


Ich habe genug, Cantata BWV 82 de Bach, é comumente traduzida como “Estou contente” ou, mais literalmente, como “Já tive o suficiente”. No centro da cantata, há uma canção de ninar de doçura consoladora e benção, cuja melodia é incomparável. Na verdade, a Cantata 82 fornece um “manual” de como morrer tranquilamente, mapeando o caminho para o paraíso.


Em seu brilhante estudo de Bach, Música no Castelo do Céu, John Eliot Gardiner diz que a teologia da época encarava o mundo como “um hospício povoado por almas doentes cujos pecados apodrecem como furúnculos supurantes e excrementos amarelos”. Mas, no BWV 82, Bach radicalmente nos permite aspirar a sermos anjos. A morte não é transformação ou punição, é missão cumprida, é uma boa noite de sono e uma alegre viagem para casa.


Trecho do autógrafo de J. S. Bach da cantata Ich habe genug (BWV 82), datado de cerca de 1727 em Leipzig, mostrando a linha vocal com a parte de oboé (ou flauta) e baixo contínuo no manuscrito original
Trecho do autógrafo de Bach da ar ‘Ich habe genug’, c. 1727, Leipzig; manuscrito autógrafo com vocal, oboé (ou flauta) e baixo contínuo

O formato da cantata é simples: um cantor — Bach criou versões para soprano, mezzo-soprano e baixo-barítono — e três árias conectadas por dois recitativos curtos. Um pequeno conjunto de cordas o acompanha. Um oboé solo (ou flauta na versão soprano) gira melodias acrobáticas fazendo um sofisticado contraponto à linha vocal. Sobre as cordas suaves, a ária de abertura começa com o oboé ou flauta, introduzindo a frase melódica de cinco notas que carregará as palavras “Ich habe genug”.


E ele, Bach, passa a nos levar pela mão a algum lugar.


A ária de canção de ninar Schlummert ein, ihr matten Augen parece representar a morte como sono. Porém, aqui Bach produz um milagre musical. O sono torna-se não a morte, mas um sonho, uma visão fugaz da morte, da qual acordamos revigorados. É por isso que a ária final curta e alegre pode ser escandalosamente viva, paradoxalmente alegre.


As árias de Händel

Se as árias de Bach são verdadeiras meditações integradas a uma narrativa litúrgica, as de Handel são teatrais, servindo muito bem aos dramas que representavam. São um mundo à parte na música barroca, combinando belas melodias, expressividade dramática, virtuosismo vocal e profundidade emocional.


Este comentarista tem especial predileção pela ária Ombra mai fu, presente neste recital. É uma belíssima melodia na qual o protagonista canta dirigindo-se a um plátano (sombra amada), num momento de lirismo surreal e quase cômico. A ironia é a de um poderoso rei declarando amor a uma árvore. A música, porém, é tão sublime que transcende o contexto. A melodia parece flutuar, como se Handel tivesse capturado o próprio conceito de paz.

Ombra mai fùdi vegetabile,cara ed amabile,soave più.


(“Nunca houve sombra / de árvore, / tão querida e amável, / mais suave.”)


Representação de Gaetano Majorano (Caffarelli), o castrato que criou o papel-título em Serse e original intérprete de Ombra mai fu.
Representação de Gaetano Majorano (Caffarelli), o castrato que criou o papel-título em Serse e original intérprete de Ombra mai fu. c. 1738, Itália, desenho contemporâneo. Caffarelli foi um dos maiores castrati da época, com vozes agudas e poderosas, ideais para encarnar o lirismo irônico da ária — um rei declamando amor por uma árvore — realçando a teatralidade dramática característica de Händel

Milton Ribeiro Jornalista cultural e livreiro, é proprietário da Livraria Bamboletras. Mais sobre o escritor: https://miltonribeiro.ars.blog.br/about/


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