Sagrado e Profano – sobre cantatas de Bach e árias de Händel
- Milton Ribeiro
- há 5 dias
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Atualizado: há 2 dias

Se as árias das Cantatas de Bach são verdadeiras meditações integradas a uma narrativa litúrgica, as de Handel são teatrais, servindo muito bem aos dramas que representavam.
O jornalista cultural Milton Ribeiro comenta com leveza e erudição o repertório do nosso concerto do dia 7 de julho, em Porto Alegre, que apresenta a música vocal de Bach – através de uma cantata e excerto de missa – e as árias de ópera de Handel.
CONCERTO: Ouça este repertório ao vivo no dia 8 de julho de 2025, em Porto Alegre. Informações e ingressos aqui.
A Sinfonia barroca
A primeira peça do Concerto é a Sinfonia da Cantata BWV 156 de Bach. Talvez devamos explicar que o termo Sinfonia, na época, era uma peça instrumental breve que introduzia principalmente óperas, oratórios e cantatas. Esta Sinfonia é um dos casos mais interessantes de reutilização musical por Bach. Ela aparece um pouco alterada no Concerto para Cravo BWV 1056 — provavelmente composto antes da cantata. Bach frequentemente reaproveitava temas seus em novos contextos. Era um costume da época.

O sublime Christe eleison
O Christe eleison da Missa em Si menor BWV 232, de Bach, é um dos momentos mais sublimes e intricados da obra. Ele é o segundo movimento na Missa após o Kyrie eleison I e antes do Kyrie eleison II. É um dueto para soprano e alto, com acompanhamento de violino solo e baixo contínuo. A Missa é uma das obras mais importantes de Bach.

A Cantata BWV 82: manual de como morrer
Podemos dizer que Bach conviveu muito com a morte. Ela foi sua companheira constante. Seus pais faleceram quando ele era menino. Sua primeira esposa morreu jovem. Ele sofreu a morte de seis de seus 20 filhos, incluindo a de um filho de seis meses antes de escrever a Cantata BVW 82.
Ich habe genug, Cantata BWV 82 de Bach, é comumente traduzida como “Estou contente” ou, mais literalmente, como “Já tive o suficiente”. No centro da cantata, há uma canção de ninar de doçura consoladora e benção, cuja melodia é incomparável. Na verdade, a Cantata 82 fornece um “manual” de como morrer tranquilamente, mapeando o caminho para o paraíso.
Em seu brilhante estudo de Bach, Música no Castelo do Céu, John Eliot Gardiner diz que a teologia da época encarava o mundo como “um hospício povoado por almas doentes cujos pecados apodrecem como furúnculos supurantes e excrementos amarelos”. Mas, no BWV 82, Bach radicalmente nos permite aspirar a sermos anjos. A morte não é transformação ou punição, é missão cumprida, é uma boa noite de sono e uma alegre viagem para casa.

O formato da cantata é simples: um cantor — Bach criou versões para soprano, mezzo-soprano e baixo-barítono — e três árias conectadas por dois recitativos curtos. Um pequeno conjunto de cordas o acompanha. Um oboé solo (ou flauta na versão soprano) gira melodias acrobáticas fazendo um sofisticado contraponto à linha vocal. Sobre as cordas suaves, a ária de abertura começa com o oboé ou flauta, introduzindo a frase melódica de cinco notas que carregará as palavras “Ich habe genug”.
E ele, Bach, passa a nos levar pela mão a algum lugar.
A ária de canção de ninar Schlummert ein, ihr matten Augen parece representar a morte como sono. Porém, aqui Bach produz um milagre musical. O sono torna-se não a morte, mas um sonho, uma visão fugaz da morte, da qual acordamos revigorados. É por isso que a ária final curta e alegre pode ser escandalosamente viva, paradoxalmente alegre.
As árias de Händel
Se as árias de Bach são verdadeiras meditações integradas a uma narrativa litúrgica, as de Handel são teatrais, servindo muito bem aos dramas que representavam. São um mundo à parte na música barroca, combinando belas melodias, expressividade dramática, virtuosismo vocal e profundidade emocional.
Este comentarista tem especial predileção pela ária Ombra mai fu, presente neste recital. É uma belíssima melodia na qual o protagonista canta dirigindo-se a um plátano (sombra amada), num momento de lirismo surreal e quase cômico. A ironia é a de um poderoso rei declarando amor a uma árvore. A música, porém, é tão sublime que transcende o contexto. A melodia parece flutuar, como se Handel tivesse capturado o próprio conceito de paz.
Ombra mai fùdi vegetabile,cara ed amabile,soave più.
(“Nunca houve sombra / de árvore, / tão querida e amável, / mais suave.”)

Milton Ribeiro Jornalista cultural e livreiro, é proprietário da Livraria Bamboletras. Mais sobre o escritor: https://miltonribeiro.ars.blog.br/about/
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