Os Bastidores da “Cantata do Café” de Johann Sebastian Bach: humor, merchandising e música
- Milton Ribeiro

- 12 de ago.
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A Cantata do Café, obra cômica de J. S. Bach, uma mini-ópera, foi apresentada entre 1732 e 1735 na Kaffeehaus de Zimmermann, em Leipzig.
O enredo da obra é ousado para a época: Schlendrian é um pai grosseiro e está preocupadíssimo porque sua filha Lieschen entregou-se à nova mania de tomar café. Todas as promessas e ameaças para desviá-la de tão detestável hábito foram infrutíferas até que, para dissuadi-la, ofereceu-lhe um marido. Lieschen aceita a idéia com entusiasmo e o pai parte apressadamente para conseguir-lhe um.
O jornalista cultural Milton Ribeiro comenta com leveza e erudição a performance da "Cantata do Café" da Bach Society Brasil, filmada e gravada com instrumentos de época.
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Os bastidores da Cantata do Café: merchandising sob encomenda
A Kaffeekantate, BWV 211, encomendada a Bach por Zimmermann é, em boa parte, uma ode ao produto (sim, puro merchandising) e, de outra, uma punhalada no movimento existente na Alemanha para impedir seu consumo pelas mulheres. Acreditava-se que o “negro veneno” ou "o pó preto que vicia" pudesse causar descontrole e esterilidade ao sexo frágil. Bach, em troca do pagamento de Zimmermann, ignorou estes terríveis perigos. Senão, talvez não musicasse uma ária que diz: “Ah, como é doce o seu sabor. / Delicioso como milhares de beijos, / mais doce que um moscatel. / Eu preciso de café”; e nem nos brindaria com estas delicadezas…: “Paizinho, não sejas tão mau. / Se eu não beber meu café / as minhas curvas vão secar / as minhas pernas vão murchar / ninguém comigo irá casar”.

Bach aprendera muito bem, em sua vida familiar e em seu trabalho como professor, que influenciar os jovens não era assim tão fácil. Portanto, adicionou um recitativo no qual os planos de Lieschen são revelados: o homem que quiser casar com ela terá de consentir numa cláusula: o contrato matrimonial preverá que ela possa tomar café sempre que lhe apetecer.
No final, há um breve coro de três cantores, onde o café e a evolução são admitidos como coisas inevitáveis. Esta Cantata — ao lado de outras poucas obras vocais profanas — é uma evidente exceção na obra de Bach. O compositor, que possui a injusta fama de sério, aceitou o convite de Zimmermann para compor uma propaganda de seu Café e, como quase sempre fazia, produziu uma obra-prima, uma pequena comédia que funciona tanto no palco quanto nas salas de concertos. O efeito da primeira apresentação deve ter sido consideravelmente ampliado pelo fato de que às mulheres não era permitido cantar em cafés (nem em igrejas) e o papel de Lieschen foi, provavelmente, interpretado por um cantor em falsete. Bach, com o auxílio do poeta Picander, construiu dois personagens muito verossímeis: um pai resmungão e rústico e uma filha obstinada e cheia de caprichos. O compositor parece estar à vontade ao traçar a caricatura do pai com o baixo pesado, os ritmos acentuados e a prescrição "con pompa", enquanto os violinos rosnam para indicar seu temperamento irascível.

O entusiasmo da moça por um possível marido recebe uma alegre melodia em ritmo de dança popular. É contagiosa. Para os puristas, o divino e sacro Bach chega a ser grosseiro: afinal, quando Lieschen diz que quer um amante fogoso e robusto, os violinos e as violas silenciam, como para deixar bem clara aos ouvintes a afirmativa sem rodeios. O Café Zimmermann deve ter vindo abaixo...
Na época, era encarado como uma moda passageira e um luxo. Erraram. E, veja bem, no inventário de Bach, há menção a dois potes de café (um grande e um pequeno) e um açucareiro.
Ou seja, o homem não era só cerveja.
O Café Zimmermann, uma casa de Bach
A primeira Kaffeehaus da cidade foi aberta em 1694 — o café chegara à Alemanha em 1670 — e em 1735 a burguesia podia escolher entre oito privilegiadas casas.
O Café Zimmermann, ou Zimmermannsches Kaffeehaus, foi a cafeteria de Gottfried Zimmermann em Leipzig que serviu de local para as estreias de algumas das Cantatas Seculares de Bach como, por exemplo, a Cantata do Café (Schweigt stille, plaudert nicht) e obras instrumentais.

Em 1723, ano em que Bach se mudou para Leipzig, a Zimmermann era a maior e mais bem equipada Kaffeehaus de Leipzig e um centro de encontro para as pessoas cultas da cidade. Importante saber que, embora as mulheres fossem proibidas de frequentar os cafés, elas podiam assistir aos concertos no Zimmermann. O café estava localizado na Katharinenstrasse 14, então a rua mais elegante de Leipzig. O nome da rua fora retirado da velha capela de Santa Catarina, demolida em 1544.
Com seus prédios barrocos, a Katharinenstrasse era um boulevard conhecido muito além das fronteiras de Leipzig no século XVIII. O edifício de quatro andares e meio do Zimmermann foi construído pelo famoso arquiteto Christian Doering por volta de 1715. O salão do Zimmermann era suficientemente grande para receber grandes conjuntos musicais barrocos — incluindo trompetes e tímpanos — e uma plateia-comensal de cerca de 150 pessoas.
A partir de 1720, o Café sediou o Collegium Musicum, fundado por Georg Philipp Telemann na época em que este era estudante de direito em 1702. Posteriormente, foi dirigido por Johann Sebastian Bach entre 1729 e 1739. Os concertos dirigidos por Bach duravam cerca de duas horas e consistiam de óperas alemãs e italianas, música de câmara, cantatas seculares e obras para orquestra.
Esses concertos eram patrocinados por Zimmermann, que fornecia o espaço e possivelmente algum apoio financeiro aos músicos, mas Bach não recebia um “salário fixo” por isso. Era mais uma oportunidade de divulgar sua música secular (como as Suítes Orquestrais e os Concertos de Brandenburgo). A parte principal de seus ganhos vinha da Igreja de São Tomás e do Conselho da Cidade de Leipzig (como Kantor). Os concertos no café eram um extra, possivelmente rendendo-lhe honorários por performances específicas ou apoio de mecenas.
Zimmermann vendia taças de café, além de outras bebidas e comidas. Os concertos reavivaram o negócio do café e o restaurante de Zimmermann, tanto que ele comprou instrumentos para o Collegium Musicum às suas próprias custas. Músicos de fora que visitavam a cidade faziam questão de apresentar-se no Zimmermann. Os concertos terminaram com a morte de Zimmermann em 1741.
Milton Ribeiro Jornalista cultural e livreiro, é proprietário da Livraria Bamboletras. Mais sobre o escritor: https://miltonribeiro.ars.blog.br/about/



Um deleite estar informada através do texto sobre Leipzig, Café Zimmerman na época de Bach.