Interpretando Bach Hoje– a revolução da performance historicamente informada no século XX e além
- Théo Amon
- há 5 dias
- 6 min de leitura

A busca por autenticidade na interpretação de Johann Sebastian Bach e seus contemporâneos levou músicos e pesquisadores do século XX a um mergulho nos tratados e documentos da época barroca, configurando um movimento que ficou conhecido como HIP (performance historicamente informada).
Este é o terceiro texto de nossa série " Interpretando Bach", dedicada à perfomance "historicamente informada" da música de Johann Sebastian Bach. A série foi escrita por Théo Amon, tradutor e crítico literário apaixonado por música erudita, por encomenda da Bach Society Brasil.

Resumo
Se o século XIX romantizou Bach, o século XX buscou restaurá-lo. A partir da década de 1950, um grupo de músicos e pesquisadores iniciou um movimento revolucionário: a performance historicamente informada (às vezes abreviado como HIP, do inglês Historically Informed Performance). A ideia central desse movimento era recriar a sonoridade e a abordagem interpretativa do barroco, utilizando instrumentos originais ou réplicas, seguindo indicações de performance escritas em tratados históricos e revivendo técnicas esquecidas. Nomes como Nikolaus Harnoncourt, Gustav Leonhardt e Frans Brüggen lideraram essa mudança, transformando radicalmente a maneira como ouvimos Bach hoje. Com modernizações e novas descobertas, é o tipo de trabalho que a Bach Society Brasil divulga em seus eventos físicos e virtuais.
O início da busca por autenticidade
No post anterior, esbocei uma lista dos intérpretes do século XIX e início do XX que se notabilizaram tocando Bach. Mas como eles o tocavam? Em instrumentos da época deles, dos intérpretes, e com a técnica instrumental que aprenderam da rica tradição pedagógica do século XIX. E esta, naturalmente, tinha sido concebida e propagada tendo em mente os instrumentos modernos e a música clássico-romântica.

Para o cravo, por exemplo, podemos falar até em dois instrumentos: o cravo barroco, como o que ouvimos nos concertos da Bach Society, e um outro, um “pseudocravo” — um monstrengo com estrutura metálica, jogos de cordas extras afinadas em oitavas inferiores para um reforço cavernoso do som, plectros (as pinças que beliscam as cordas quando se pressiona uma tecla) fabricados de materiais diferentes dos bicos de pena do barroco, e muitas outras diferenças.
O curioso pode conferir com os próprios ouvidos: ouça esta interpretação de Wanda Landowska, em um cravo romântico desses que descrevi, tocando o Prelúdio e fuga em mi bemol maior BWV 876 do Livro II do Cravo bem-temperado.
Totalmente diferente do que ouvimos em uma réplica fidedigna de cravo barroco aqui no Bach Brasil, não?
Detalhes técnicos que fazem toda a diferença
Isso não aconteceu apenas com o cravo, naturalmente. Todos os instrumentos que existem em comum entre uma orquestra barroca e uma de hoje em dia mudaram enormemente nesses trezentos e poucos anos. E, com essa mudança material, outra coisa mudou: a técnica do intérprete.
A linguagem musical barroca tinha uma dicção, uma retórica, um “sotaque” diferente do repertório erudito mais difundido (digamos, um Tchaikóvski, ou até mesmo um Beethoven). Os “gestos”, os pequenos grupos de notas sucessivas que, somados, compõem uma frase melódica (mal-comparando: as partes que compõem uma longa frase dita ou escrita, cheia de parênteses, orações subordinadas, adjuntos, apostos, vocativos etc.), eram menores e mais densos.

Assim, uma passagem que um violinista “romântico” preferiria executar numa mesma arcada (aquela puxada do arco, seja para baixo ou para cima, para friccionar as cordas do violino e fazê-las emitir som), o violinista sintonizado com o modo barroco de fazer música preferiria dividi-la em mais de uma arcada. Com isso, ele consegue distribuir melhor as ênfases, separar o essencial do acessório, talvez até se demorar um pouco em uma nota mais proeminente e, em seguida, encurtar a nota seguinte, menos importante no discurso musical. O resultado é um discurso musical mais intrincado, dando uma impressão mais complexa de um compositor que “fala” diretamente com cada um, em vez de discursar genericamente para uma multidão.
Ouçam estas duas interpretações da Allemande da Partita nº 2 em ré menor BWV 1004 para violino solo e tirem suas próprias conclusões: aqui em violino barroco tocado por Marcio Ceconello, em gravação da Bach Society Brasil.
E aqui em uma interpretação bastante romantizada de Itzhak Perlman.
O movimento HIP: performance historicamente informada
Mas como os intérpretes de hoje sabem como se tocava música em 1715? Saber com exatidão ninguém sabe: o que podemos é deduzir, especialmente a partir dos tratados barrocos, isto é, os livrões de teoria e prática musical que se escrevia na época.

Manuais como o Ensaio de instrução para tocar a flauta transversa (1752), do flautista e compositor Johann Joachim Quantz (1697-1773), ou o Ensaio sobre a verdadeira maneira de tocar o teclado (1753-62), de Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788), dão descrições precisas sobre detalhes de dedilhado, postura, exercícios, ornamentos, interpretação e aspectos emotivos, andamento de execução e muito mais. Tabelas ilustrativas, excertos de partituras e até mesmo composições inteiras, publicadas como apêndice, serviam para guiar a formação do aprendiz longe do mestre, como no ensino à distância atual. Porém, a distância mais determinante acabou sendo não a espacial, mas a temporal — pois é graças a esses e inúmeros outros trabalhos escritos, quando estudados junto com um exame minucioso das obras musicais, que os músicos atuais conseguem reproduzir como soava a música composta três séculos atrás.

Claro, esses livros, importantes na época, foram aos poucos saindo de circulação. Isso aconteceu como consequência da evolução da estética musical e dos próprios instrumentos, que mudaram muito desde então, como já explicamos. Mas um grande trabalho de arquivista — resgatar essas obras antiquíssimas de bibliotecas obscuras, decifrar sua linguagem obsoleta, reeditar e traduzir todo esse acervo, e implementar os ensinamentos na prática da docência, da gravação e da performance ao vivo — foi iniciado por uma geração de grandes músicos a partir da década de 1940 e 1950, como Ralph Kirkpatrick, Helmut Walcha, Karl Richter, Gustav Leonhardt, Nikolaus Harnoncourt, Frans Brüggen, os irmãos Kuijken e muitos outros).

Eles também foram ajudados por uma geração talentosa de luthiers e outros construtores de instrumentos que ressuscitaram à vida musical ativa os instrumentos originais do período barroco (os que sobreviveram ao tempo ou às reformas que já mencionamos) ou construíram réplicas fiéis deles. A par disso, houve o resgate histórico da concepção sonora, da discursividade específica e das práticas socioartísticas daquele tempo.
Para dar um exemplo extremo: há uma gravação integral das cantatas sacras de Bach, regida por Leonhardt e Harnoncourt, que, de tão ortodoxa na sua ambição de recriar exatamente o que se ouviria na época, confia as partes agudas da seção vocal a meninos, e não a mulheres, que em certos cultos não eram admitidas na performance em igreja! Ouça o resultado aqui.
Todo esse complexo de esforços, ao conquistar seu lugar nos conservatórios e universidades, no circuito concertístico e nas gravações de álbuns, acabou se consolidando na vertente que chamamos de performance historicamente informada. Ela é exercida com grande dedicação e talento pelos músicos da Bach Society Brasil e seus solistas convidados, aqueles que proporcionam as primorosas noites musicais que nossos apoiadores e público já conhecem (e que você pode conferir na extensa série de vídeos da Bach Brasil do YouTube).

Conclusão: A busca continua
Naturalmente, não podemos nunca ter absolutamente certeza de como se davam, por volta de 1700, certos aspectos do todo complexo que resulta na música ouvida. Alguns pontos em particular, como altura de diapasão (a quantos Hertz de frequência vibrava a nota lá que se usa de referência para afinar todas as outras?) e a quantidade metronômica dos andamentos (quantas batidas por minuto estão implicadas numa indicação de velocidade como Allegro molto?), são especialmente obscuros ou vagos. Porém, como já expusemos, podemos tentar nos aproximar bastante da verdade histórica a partir de registros escritos, de instrumentos originais que se safaram das mutilações que já contamos, de representações artísticas de outra natureza (pictóricas, literárias) que retratam o fazer musical daquela era, e também de inferências e conjecturas mais ou menos prováveis que podem ser extraídas quando se coordena todo esse vasto material. E é este o trabalho que a Bach Society busca promover e que os concertos da série Bach Brasil trazem aos seus amigos.
Leia os outros posts da série "Interpretando Bach":
Interpretando Bach no Barroco
Interpretando Bach no Romantismo
Interpretando Bach Hoje
Théo Amon Tradutor, pesquisador e crítico literário. Doutor em Letras pelas UFRGS
Entre em contato com o autor aqui.
Maravilhoso! Nos faz ver (e ouvir) a música barroca com uma perspectiva totalmente diferente. Obrigado por essa série de textos enriquecedores!
Excelentes textos. Além de escuta crítica e conhecimento histórico, a HIP é um exercício de respeito ao nosso grande Bach e demais compositores, sejam medievais, renascentistas ou barrocos.
Parabéns pelos excelentes textos, Theo. E muito obrigado pela tua imensa contribuição para o nosso projeto!
Não sei quanto aos demais, mas já estou ansioso pela próxima trilogia! :D
Grande abraço.