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Interpretando Bach no Romantismo – a redescoberta da música de Johann Sebastian Bach no século XIX

Atualizado: há 6 dias


Colagem com Bach e Mendelssohn

Após sua morte, em 1750, a música de Johann Sebastian Bach caiu em relativa obscuridade, sendo resgatados no século XIX por nomes como Mendelssohn, Liszt, Busoni e outros gigantes do romantismo.

Este é o segundo texto de nossa série dedicada à perfomance "historicamente informada" da música de Bach. A série foi escrita por Théo Amon, tradutor e crítico literário apaixonado por música erudita, por encomenda da Bach Society Brasil. Leia mais posts. Seja notificado por e-mail sobre novos posts.

Resumo

Após sua morte, em 1750, a música de Johann Sebastian Bach caiu em relativa obscuridade, sendo vista como antiquada diante das novas tendências do classicismo e do romantismo. Foi apenas em meados do século XIX que Bach foi redescoberto e elevado à posição de gênio atemporal, um pilar da música ocidental. No entanto, essa redescoberta veio acompanhada de uma profunda transformação: sua música passou a ser interpretada segundo os valores românticos, com instrumentos modernizados, orquestrações ampliadas e uma abordagem expressiva que pouco tinha a ver com a estética barroca. Neste post, analisaremos como Mendelssohn, Liszt, Busoni e outros gigantes do romantismo moldaram a nossa percepção de Bach.


Século XIX: mudança no público e instrumentos

Dos tempos de Bach até os nossos se interpôs o pujante século XIX, orgulhoso de suas conquistas tecnológicas e já com expectativas totalmente diferentes quanto à performance musical. Nesse meio-tempo, por exemplo, já tinha sido inventado o concerto público, em que se entra mediante um ingresso — bem diferente dos saraus da aristocracia barroca, reservados a uma meia dúzia de afortunados. Por outro lado, e talvez mais importante, a crescente secularização da vida pública transferiu muito da atividade musical das igrejas para “imóveis profanos”, como casas de ópera e teatros. 


Litografia do interior do Teatro Municipal de Koenigsberg, criada por Sacher no século XIX.​
Litografia do interior do Teatro Municipal de Koenigsberg, criada por Sacher no século XIX.​

Com a multiplicação enorme do público ouvinte (e consumidor, pois nesse ínterim a música havia se tornado também uma mercadoria, com venda de partituras impressas, instrumentos feitos em série, ingressos pagos e cachês), o espaço físico onde se fazia música teve que se ampliar. Isso também tinha razões intrinsecamente musicais, além de sociais: a harmonia cada vez mais complexa, saturada, exigia conjuntos e orquestras maiores e mais variados. 

Como consequência, a preferência por massas sonoras mais homogêneas dentro de cada naipe de instrumentos (violinos, violas, violoncelos, contrabaixos, trompas e tantos outros) exigiu também uma exatidão e uma reprodutibilidade mais apuradas na confecção dos instrumentos, o que vinha causando fortes mudanças na estrutura deles no mínimo desde a metade do século XVIII.

Aliás, foi por aí que o nosso familiar piano, ou, na verdade, um avô seu, o fortepiano, suplantou o cravo como principal instrumento de teclado (ouça aqui uma peça de Mozart executada por Fernando Cordella em um fortepiano).

Reformas nos instrumentos

Um dos efeitos nocivos, quase catastróficos, disso foi uma grande onda de reformas em instrumentos. Operações extremamente invasivas foram perpetradas em inúmeros instrumentos de ótima qualidade para que adquirissem mais volume, projeção, homogeneidade de timbre, cordas/chaves extras, adereços de suporte e muito mais.

Os poucos instrumentos do século XVII e XVIII que permaneceram intactos foram os que já estavam a salvo em algum museu ou coleção, sem serem usados ativamente. Até órgãos de igreja, aqueles monstrengos de chumbo, tiveram suas tubulações, registros e outras coisas virados do avesso. Felizmente, houve alguns que passaram ilesos ou que foram magnificamente restaurados (ouça abaixo um belo prelúdio coral de Bach tocado por Gustav Leonhardt no órgão barroco de Hagerbeer-Schnitger da Igreja de São Lourenço, em Alkmaar, Holanda — um instrumento que se começou a construir em 1639!).


A morte (provisória) do barroco

E não foi apenas o arsenal material da música que mudou muito nesse meio-tempo. A evolução musical não para jamais, e, logo após a sua morte (ou mesmo durante o ocaso da sua vida), a linguagem musical de Bach era considerada muito antiquada. O meio do século XVIII já virara as costas às formas estritas do Alto Barroco, com sua ênfase em contraponto, estruturas intrincadas, gestos retóricos, rica harmonia cromática, obras com uma grande quantidade de movimentos etc. Agora, preferia-se um estilo mais delgado e flexível, com menos pretensões emotivas e uma tônica fortíssima em elegância, despretensão, clareza de contornos, estruturas autoexplicativas, unidades arquitetônicas menos numerosas e até uma certa ironia de expressão. Todos esses traços convinham ao Século das Luzes, ao Iluminismo, que se colocava por missão desfazer de vez a obscuridade ainda “medieval” do que vinha antes. Assim, as vertentes do rococó e do classicismo acabaram por jogar uma simbólica “pá de cal” na música barroca, cuja complexidade composicional e imensa gama emotiva só voltava à superfície em breves espasmos.

Para o leitor ter um exemplo de dois desses “retornos de barroquismo” durante o século XVIII:  a estética da “sensibilidade” (Empfindsamkeit) teve como uma de suas maiores figuras um filho de quem? Bach, claro — ouça abaixo um movimento de sinfonia de Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788).

Já a “tempestade e ímpeto” (Sturm und Drang), que foi uma espécie de pré-romantismo soturno da década de 1770, seduziu até personalidades tão solares quanto a de Joseph Haydn (1732-1809) — ouça abaixo a sua Sinfonia nº 45, apelidada Sinfonia do adeus, também em instrumentos de época.

Mas voltando: o resultado disso tudo foi que, até uma parte avançada do século XIX, Bach era música de “tema de casa”: pianistas aprendizes estudavam prelúdios e fugas do Cravo bem-temperado, talvez bocejando; aspirantes a compositor cumpriam árduas lições de contraponto analisando ou rearranjando fugas bachianas; mas Bach era definitivamente música do passado.

Inclusive, já em fins dos 1700, quem falava apenas “Bach” estava provavelmente se referindo a Carl Philipp Emanuel Bach, e não a seu pai, o nosso Johann Sebastian! Este passara a ser contemplado mais com veneração do que com admiração verdadeira: tornara-se aquele personagem emblemático mas distante que se chama “figura tutelar”, quase um santo patrono.
Retrato de Carl Philipp Emanuel Bach.
Retrato de Carl Philipp Emanuel Bach.

O revival de Bach

Mas o revival de Bach não tardou a chegar, e pelas mãos talentosas de um estupendo compositor: Felix Mendelssohn (1809-1847). Este regeu, em 1829, uma espetacular encenação da Paixão segundo São Mateus, quase 80 anos depois da morte de Bach. Foi o início de uma gradual, mas cumulativa reaproximação à música de “Bach pai”, que se espalhou do setor da música sacra para todas as áreas da sua produção que andavam cruelmente negligenciadas. Aí está incluída a grande música para Clavier (palavra do tempo de Bach que englobava indistintamente vários instrumentos de teclado da sua época), agora tocada no piano mesmo; as peças solo para violino, violoncelo, flauta e alaúde; toda a estupenda produção bachiana de música de câmara; as obras para órgão; as suítes orquestrais e os concertos.

Retrato de Felix Mendelssohn, pintado por James Warren Childe em 1829.
Retrato de Felix Mendelssohn, pintado por James Warren Childe em 1829. O jovem compositor conduziu a histórica apresentação da Paixão Segundo São Mateus, marcando o início do renascimento da música de Bach

Em fins do século XIX, a posição de Bach no cânone musical e no repertório ativo era já uma realidade incontestável. O grande pianista e maestro Hans von Bülow (1830-1894) falava mesmo em uma santíssima trindade dos “três Bs”: Bach, Beethoven e Brahms, conjugando barroco, classicismo e romantismo em uma grande linha, sem solução de continuidade (o que também trouxe seus problemas, como veremos no próximo post). Além dele, grandes monstros sagrados da performance musical, como Franz Liszt, Ferruccio Busoni, Joseph Joachim, Pablo Casals, Wanda Landowska, Edwin Fischer, George Enescu, Yehudi Menuhin, Andrés Segovia e muitos outros, tão variados entre si quanto estes citados, foram passando a tocha adiante. Essa nova tradição interpretativa garantiu uma transição segura da fama e apreço pela música bachiana do século XIX, que fez tanto bem quanto mal para as práticas e filosofia musicais, para o mais arejado século XX.

Especialmente dos anos 1950 em diante, abriu-se um enorme leque de estudos acadêmicos, gravações comerciais, novas abordagens estéticas e inclusive incorporação da música erudita à cultura de massas (quem nunca ouviu um trecho de uma cantata de Bach em algum comercial de TV?), resultando numa apreciação verdadeiramente mundial pela música do nosso compositor.


Conclusão: Rumo à performance historicamente informada

O século XIX resgatou Bach do esquecimento, mas o fez à sua própria maneira. O romantismo adaptou a música bachiana para grandes teatros, orquestras monumentais e pianos robustos, muitas vezes afastando-se da sonoridade original de suas obras. Esse processo, embora tenha garantido a imortalidade de sua música, também criou uma imagem de Bach que era, em muitos aspectos, uma invenção romântica. Mas, no século XX, um movimento buscou reverter essa tendência e resgatar a autenticidade do som barroco: o movimento da performance historicamente informada, que abordaremos no próximo post.


Théo Amon

Tradutor, pesquisador e crítico literário. Doutor em Letras pelas UFRGS

Entre em contato com o autor aqui.


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