Interpretando Bach no Barroco – Como era tocada a música de Johann Sebastian Bach no séc. XVIII
- Théo Amon
- 22 de abr.
- 7 min de leitura
Atualizado: há 6 dias

Como soava a música de Johann Sebastian Bach em seu próprio tempo? Certamente não era como a ouvimos hoje em gravações e concertos. E por que?
Este é o ponto de partida de uma história fascinante que investiga como a interpretação da música barroca mudou continuamente ao longo dos séculos, desde o Romantismo do século XIX, passando pelo séc. XX até os dias de hoje.
Este é o primeiro texto de nossa série "Interpretando Bach" dedicada à perfomance "historicamente informada" da música de Bach. A série foi escrita por Théo Amon, tradutor e crítico literário apaixonado por música erudita, por encomenda da Bach Society Brasil.
Resumo
Para compreendermos a música de Johann Sebastian Bach, é essencial mergulharmos no contexto em que ela foi criada. O período barroco, que se estendeu dos séculos XVII ao XVIII, foi uma época de transformações sociais, religiosas e tecnológicas que impactaram profundamente a produção musical. Os instrumentos eram construídos artesanalmente, os músicos estavam inseridos em estruturas rígidas de patronato e a música tinha funções muito específicas, variando de acordo com o ambiente em que era executada. Neste post, exploraremos como essas características definiram a sonoridade e as práticas interpretativas da época, e como Bach se encaixa nesse universo.
A importância do “contexto” na música
Para uma apreciação mais fina de qualquer fenômeno musical, é necessário um entendimento de quem está fazendo o quê, como, onde, quando e por quê.
A música é uma arte intensamente dependente da materialidade que é o seu meio de propagação — o som, ondas periódicas de ar produzidas por corpos vibrantes e recepcionadas pelo nosso tímpano — e das técnicas específicas para dominar essa materialidade (desde a construção dos instrumentos até a destreza corporal — manual, respiratória, fônica — que permite manejá-los). Por outro lado, a música é intimamente ligada às práticas e convenções sociais nas quais se insere como atividade humana.
Neste post, pretendo contextualizar historicamente a grande diferença entre como a música era praticada e entendida no século XVII e início do XVIII — o chamado período barroco — e a atualidade. Após essa comparação, ficará mais clara para o leitor a validade e até mesmo a necessidade de adaptar as práticas musicais quando se executa e ouve a música dessa época — inclusive a do nosso estimado Bach.

Esta adaptação, que no século XX levou o nome de “performance historicamente informada” (historically informed performance), e que muitas vezes é chamada simplesmente “performance de época”, é fundamental para entender o trabalho de pesquisa interpretativa da Bach Society Brasil. Todos os nossos concertos, vídeos e atividades estão ancorados neste propósito de resgatar, tanto quanto possível, não só as notas de Bach, mas a maneira como sua música era tocada no período em que ele a criou.
A sociedade barroca
A estrutura social europeia nessa época ainda estava em sua longa e complicada transição entre o mundo medieval e a era moderna. Com isso, quero apontar que muitas das noções hoje incontestáveis na esfera pública e privada — igualdade entre os cidadãos e os sexos, direito universal à educação e cultura, liberdade de religião e expressão etc. — estavam ainda em incubação ou passavam por um processo nada tranquilo de transformação. A esfera em que Johann Sebastian Bach viveu e criou oferece um exemplo essencial destes fenômenos aplicados à sua época e região.

Naquela época, o que hoje é a Alemanha estava fragmentado em centenas de reinos, principados, arquiducados, ducados e por aí afora. Era uma situação ainda medieval, herdada do antigo Sacro Império Romano-Germânico, em que o poder era descentralizado entre muitos soberanos que deviam uma obediência algo difusa ao imperador.

Na época de Bach, já posterior à Reforma Protestante, a religião pessoal do soberano ditava muito do que podia acontecer artisticamente nos seus domínios. Em função disso, o tipo de música tocada e cantada nos palácios e nos templos religiosos podia variar radicalmente conforme a confissão específica do príncipe, privilegiando mais a música vocal ou instrumental, admitindo ou não o culto aos santos e à Virgem Maria, permitindo ou não a participação de mulheres na performance musical e assim por diante.
Outros pontos com grande peso eram os diversos estamentos sociais, como corte e alta aristocracia, nobreza rural, alto e baixo clero, grandes mercadores, pequeno-burgueses, operários e artesãos, serviçais e agricultores. Não havia quase nenhuma mobilidade entre essas categorias e vigorava uma distribuição extremamente rígida e desigual de direitos e prerrogativas, que condicionavam ferreamente os destinos individuais em termos de oportunidades de remuneração, educação, trabalho, habitação e saúde. Até o vestuário quotidiano e as formas discursivas de tratamento (como os nossos modernos “tu”, “você” e “o senhor”) eram rigidamente marcados de acordo com a condição social fixa de cada falante e de cada interlocutor.

Bach: um homem do seu tempo
Por que fizemos esse rodeio todo em um texto que deveria ser sobre música? Para entendermos, por exemplo, por que a obra de Bach é tão compartimentada.
Nos próximos parágrafos, clique nos links e passeie pela obra de Bach com exemplos tocados em performance de época pela Bach Society Brasil.)
Quem acompanhar uma cronologia da produção musical de Bach em função das fases da sua vida verá que em determinadas épocas ele compôs mais obras para órgão.
outra, cantatas e outras obras vocais sacras (como o “Magnificat”), em um ritmo vertiginoso; em mais outra, peças para cravo e outros instrumentos solo, como o alaúde, o violino ou o violoncelo, além de música de câmara envolvendo flauta.
outros momentos, explorou a forma italiana do concerto grosso (como os famosos “Concertos de Brandemburgo”), após ter muito estudado esse estilo adaptando concertos italianos.
fim da vida, inclusive, compôs algumas obras que, a par da tradicional inventividade técnica e expressividade arrebatadora de tudo que Bach fez, possuem um enorme interesse teórico, independentemente de se estar ouvindo-as ou apenas examinando a partitura, e que dificilmente são classificáveis nos gêneros fixos da época (“A Arte da Fuga” e “Oferenda Musical”).
Tudo isso estava em função de um fator bem concreto e até banal: o emprego, o local de residência e a situação de vida de Bach em cada fase, naquela estrutura social ainda muito diferente dos nossos hábitos mentais de liberdade profissional, possibilidade de ascensão social, autodeterminação do indivíduo e por aí afora. Bach era, em todos os aspectos, um homem profundamente do seu tempo. E esse tempo era muitíssimo diferente do nosso, especialmente nas representações que hoje temos sobre a música, herdadas do influente século XIX, que consagrou conceitos recorrentes como “gênio”, “inspiração”, “posteridade” e “música do futuro”. A crítica e estética do romantismo tardio impregnaram esses conceitos no discurso musical com tanta força que precisamos fazer um esforço consciente para enxergarmos a história da música com olhos mais objetivos.

Os instrumentos barrocos
Mas voltemos dessas considerações históricas para a concretude que tratamos primeiro neste texto: a técnica, a parte física e muito material de fazer música. A construção dos instrumentos nessa época, ainda anterior às grandes revoluções industriais, era toda feita à mão. Era uma arte muito paciente e minuciosa, quase sempre passada de pai para filho em longas linhagens de artesãos, com grandes variações de região para região ou de década para década.
A história do alaúde, por exemplo, preencheria vários tomos de enciclopédia, e dos grandes, pois as diferenças de formato, funcionamento e, claro, sonoridade de cada exemplar eram realmente enormes — e os intérpretes de hoje precisam ser ao mesmo tempo pesquisadores para conseguir tocar satisfatoriamente a música barroca.

Em linha geral, porém, uma coisa pode-se afirmar: os instrumentos musicais da época barroca eram todos mais delicados, com sonoridade mais doce e nuançada, e um volume de som bem menos potente que os atuais. As cordas dos instrumentos de corda, por exemplo, eram quase todas feitas de tripa animal, que aceita uma tensão de esticamento muito menor que as atuais de aço ou nylon, senão se rompe, O cepo ao qual as muitas cordas dos instrumentos de teclado estão presas não eram as maciças estruturas de aço de um piano moderno, mas blocos de madeira. Exemplos poderiam ser empilhados, mas o crucial foi dito: a limitação tecnológica dos materiais e processos de produção dessa época ainda sem potentes máquinas a vapor, energia elétrica ou sofisticadas ligas e polímeros define muito da sonoridade musical característica do barroco.

Conclusão: Rumo ao século XIX
O universo musical do barroco era repleto de nuances que hoje nos parecem distantes, mas que definiram a obra de Bach e de seus contemporâneos. Seus instrumentos, sua afinação, sua retórica musical e suas funções sociais eram muito distintos dos que temos hoje. Compreender esse contexto nos permite apreciar sua obra sob uma nova perspectiva, sem as lentes modernizadoras que a posteridade impôs. No próximo post, veremos como o século XIX redescobriu Bach, reinterpretando-o segundo seus próprios ideais estéticos.
Théo Amon Tradutor, pesquisador e crítico literário. Doutor em Letras pelas UFRGS
Entre em contato com o autor aqui.
Leia os outros posts da série "Interpretando Bach":
Interpretando Bach no Barroco
Interpretando Bach no Romantismo (estreia em 3 de maio)
Interpretando Bach Hoje ( (estreia em 10 de maio)
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Excelente texto. "Compreender esse contexto nos permite apreciar sua obra sob uma nova perspectiva". Não poderia concordar mais. Soa algo óbvio, até trivial, mas é um processo que demanda imaginação e humildade.